António Filipe Nunes, técnico superior de diagnóstico e terapêutica no Serviço de Imagiologia do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (HFF), é um dos participantes numa reportagem do Jornal de Notícias sobre a terceira vaga da pandemia. Nesta série de oito testemunhos, os profissionais de saúde falam sobre os efeitos da COVID-19 que transformou as suas vidas pessoais e profissionais.
Aqui transcrevemos o seu testemunho:
“É desgastante, fisicamente é muito desgastante, o cansaço é cada vez maior, sente-se em todo o lado, na pele, no corpo, na cabeça, vê-se na cara, na minha e na dos meus colegas, técnicos, médicos, enfermeiros, auxiliares, maqueiros, andamos todos esgotados. E psicologicamente, a vermos a degradação dos doentes, que chegam cada vez mais, e cada vez mais incapazes, sim, é cada vez pior. E vai continuar tudo a aumentar – dantes, faz agora quase um ano, fazíamos 20 a 30 exames de radiologia por dia; agora andamos a fazer 80 a 90 todos os dias.
Chamo-me António Filipe Nunes, tenho 30 anos, sou técnico superior de diagnóstico e terapêutica e trabalho no Serviço de Imagiologia do Hospital Fernando Fonseca, o Amadora-Sintra, o maior hospital público do país, com o maior número de internados com covid do país. Não me arrependo do caminho que escolhi, é pesado, mas é o meu, isto não é só uma profissão, é também dedicação. Mas esgota, esgota mesmo trabalhar assim. Eu segui a minha mãe, que é enfermeira, e os enfermeiros são os profissionais mais próximos dos doentes. Eu escolhi uma área mais distanciada da emoção, julgava eu. Enganei-me bem, não vejo só as fichas asséticas de raios-X e TAC dos doentes, vejo as pessoas, falo com elas, vejo a sua evolução, e o stress emocional é permanente, é gigante.
Não fico enraivecido, a raiva não serve de nada, por isso só nos resta uma coisa, que é das poucas que ainda nos deixam fazer: continuar a trabalhar.
Circulam aqui milhares de histórias, que são lições diárias de vida, que nos ajudam a relativizar as nossas vidas, as nossas pequenas preocupações e que nos ajudam a aguentar. Lembro-me bem de uma das primeiras mortes aqui com covid. Era uma senhora de 60 anos que chegou para fazer um exame. Reconheci-a logo, fora minha professora no secundário. Falamos e parecia bem. Fizemos a TAC ao abdómen e ao tórax, e vimos uns sinais estranhos. Seguimo-la. A evolução foi fulminante. Em menos de uma semana morreu. Não pudemos fazer nada. Foi um choque. Fiquei traumatizado.
Há outra mulher que nunca esquecerei, 80 anos, tinha partido o pulso, chegou ao raio-X. Engraçou logo comigo. Disse-me que eu parecia um neto dela. E depois começou logo a chorar. Ela contou. Tinha acabado de perder o marido. Ele só viera fazer uma colonoscopia. Mas já estava infetado com covid. E em poucas horas piorou tanto que morreu. Ela não conseguiu despedir-se dele. Foi uma coisa de rachar ao meio o coração.
Agora transporto estas histórias sempre comigo, também são o meu património emocional.
Mas: como é que isto nos aconteceu? Fomos tão bons na primeira fase da pandemia que acreditei que ia ser sempre assim, que íamos ser diferentes, que íamos ser melhores. E estava cheio de orgulho. Enganei-me. E agora não consigo conformar-me com o comportamento tão irresponsável de tanta gente, como ainda vimos este Natal – e nem acho que a culpa seja do Governo, o Governo não pode pôr um polícia em cada casa; não, a culpa é mesmo de cada um. E fico triste. E desanimado. E desiludido. Mas não fico enraivecido, a raiva não me serve de nada, nem a ninguém. Por isso, só nos resta uma coisa, que é das poucas coisas que ainda nos deixam fazer: é continuar a trabalhar, e trabalhar com toda a força que houver.”
Pode aceder aqui a este trabalho jornalístico, bem exemplificativo e ilustrativo dos sentimentos vividos, e ainda bem presentes, por quem tem estado na linha-da-frente do combate a este vírus:
Reportagem JN “Olhar o Vírus na linha da frente”